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sábado, 13 de dezembro de 2014

A CONSTRUÇÃO INTERDISCIPLINAR A PARTIR DA RELAÇÃO PROFESSOR/ALUNO

“(Texto elaborado para a prova escrita do concurso de livre docência — Unesp-Botucatu, 1991”).
Apenas as pontas de alguns icebergs serão apresentadas neste prova. Especialmente porque para mim são pontas que merecem sei mais bem exploradas. Há que se dizer, entretanto, que não são olhada; casuais.
Se para percebê-las houve o consenso da intuição, não que isse possa ser desconsiderado, o fato de que para chegar a elas vivi um processo que foi subsidiado de muito estudo teórico e de muita prática.
A imagem dos icebergs, de que me utilizo, eu justifico: trata-se esta prova de concurso para professor livre-docente. Quero estruturá-la em três segmentos: o primeiro em que pontuo elementos conceituais por meio de algumas referências históricas; o segundo, em que questiono elementos da realidade, e o terceiro, em que, a partir dos anteriores, quero explorar possibilidades ou, ao menos, esboçar perspectivas.
Desta forma, concebo esta situação em que, pretendendo a livre-docência, devo me posicionar com relação à teoria, à prática e às perspectivas que, sempre na imbricação das duas anteriores, possam representar o anúncio de uma nova perspectiva que, particularmente, acredito deva um candidato à livre-docência contemplar.
É nesse sentido que me permito pela primeira vez discorrer sobre algo que estudei por quatro anos consecutivos, e que entretanto ainda não houvera tido a coragem de tornar público — a dimensão teórico/crítica de uma postura que se aproxima daquela definida como analítica, dentro da psicologia — a posição de Jung e seus seguidores diante da questão das relações interpessoais, vendo nelas uma possibilidade de rever posturas tradicionais que estudam o professor e o aluno no processo de ensino/aprendizagem.
Pontuando componentes conceituais através de algumas referências históricas
A relação mais antiga referente ao tema em questão me sugere uma volta à velha Grécia, mais especificamente, à Paideia e, com ela, a possibilidade de revermos uma situação: a de preceptor e discípulo. O preceptor, se bem me recordo de alguns fragmentos descritos por Jaèger (há tantos anos lido e não retomado na atualidade pelos estudiosos da educação), é aquele que ajuda o discípulo a fazer uma leitura das coisas próprias do conhecimento em geral. O discípulo é aquele que gradativamente é indicado a ampliar essa leitura. Preceptor e discípulo trazem consigo conhecimentos próprios de um e de outro, que ampliados sintetizam uma proposta eterna e primeira da educação: Paideia — hoje posso simplificá-la ou reduzi-la a uma palavra pertencente ao meu universo atual de discurso teórico: parceria. Paideia é forma de parceria em que alguém não alfabetizado para as coisas do mundo amplia ou tem a possibilidade de ampliar seu universo próprio de leitura com alguém que viveu mais, que pôde ler mais e que se dispõe com o discípulo a inaugurar também para si o exercício da troca. Em troca, em parceria, ambos evoluem — preceptor e discípulo e com essa evolução a possibilidade de construção/produção de novos conhecimentos.
Embora na Paideia gradativamente encontremos uma evolução para o estabelecimento de papéis, o de preceptor e o de discípulo, uma análise mais detalhada das situações da época, podemos sugerir uma interpretação, ou ideia de uma educação matriarcal na antiga Grécia.
(“Ciclo ou fase matriarcal, também denominada por urobórica, é estágio inicial, indiscriminado em que a psique da mãe e da criança formam um todo. Surge da união se///corpo/natureza/outro — descrição feita a partir das leituras de Eric Neumann, The child, Nova York, 1973, e Michael Fordham in Children as individuais, Londres, H. and Stoughton, 1969.”)
Mas, esse todo, inicialmente indiscriminado, gradativamente vai se estruturando, é a mudança de ciclo tão estudada e discutida na psicologia analítica, e que sob a óptica da história da educação também pode ser analisada.
Não cabe aqui descermos aos detalhes dessa evolução gradativa de ciclos; para tanto reportaríamos o leitor que se interessar por um trabalho (dissertação de mestrado) desenvolvido por Ecleide Furla-netto — A possibilidade de uma leitura simbólica na escola, no qual a ideia de mudança de ciclo é apresentada também por uma nova concepção de espaço/tempo, já presente nas atuais discussões sobre os pressupostos da ciência — a sincronicidade em contraposição à diacronicidade. O que Ecleide quer dizer é que de um todo indiscriminado passamos a um todo estruturado — não numa direção sequencial, pois os ciclos se alternam. Entramos então com Descartes e seus seguidores num ciclo que os psicólogos analíticos denominariam patriarcado, Inaugura-se com o Discurso do método, então, o império da objetividade que alimenta a racionalidade da qual ainda somos filhos como "Academia" — determinando o conceito de professor (quem ensina a), ideia de escola (local onde se aprende) e o conceito de aluno (quem aprende), ideia essa que vai gradativamente adquirindo contornos próprios tão rígidos, aprimorados por todo o século XIX e ainda vigorando como verdadeiros ao final mesmo deste século XX.
(“Em Neumann e Fordham entendemos que esse e o ciclo caracterizado por uma maior distancia entre o ego e o self. Existem aqui o certo e o errado, o permitido e o não permitido. O ruim é sempre ruim e o bom é sempre bom nos diz também Suely Moreira em dissertação de mestrado orientada por nós, agora publicada em livro: Da clínica à sala de aula, São Paulo, Loyola, 1989”)
  
O império do patriarcado, da objetividade é tão poderoso que consegue até sobrepor-se a uma nova polaridade surgida em finais do século XVIII com Rousseau — da necessidade de exercer-se a subjetividade.
Inaugurada por Rousseau, essa que ousaríamos chamar "pesquisa da subjetividade" é desenvolvida ao final do século XIX e início do século XX por Decroly, Montessori, Claparéde, Freinet, entre outros, e a denominamos posteriormente por Movimento da Escola Nova. Revisitando Montessori, por exemplo, (“Ideias extraídas do texto/verbete escrito por Jean Piaget para a Enciclopedie Française, volume XV — Education et instruçtion, segunda parte.”) encontramos a busca de uma pedagogia científica, mas de um científico que objetivava a educação dos sentidos, portanto, da subjetividade. Partia de elementos da filosofia e da psicologia, porém, aplicando-as à vida pessoal, inalienável, particular, subjetiva da criança. Montessori pesquisa elementos decisivos na descoberta da liberdade ativa da criança e no desenvolvimento da espontaneidade infantil. Uma parada atenta em Decroly nos induz à observação da criança sem uma ideia preconcebida, a fim de que seja possível descobrir-se novos aspectos de tudo o que a vida concreta, cotidiana apresenta. Decroly parte de um global, de um indiferenciado, de um urobórico para chegar-se a sínteses que não se finalizam sem si próprias, mas que se aproximaram do que os gregos denominavam syntese (com y) — daquelas que nunca se fecham em verdades absolutas.
É com Montessori que a ideia de ensino se altera. Em contraposição ao imobilismo, decreta a busca da autonomia — o aluno é quem verdadeiramente conduz o processo do conhecimento. Ao professor cabe a atitude da espera — a lição do silêncio. Montessori preconizava a exploração livre de um material objetivamente elaborado, porém subjetivamente pesquisado, tendo em vista a produção do conhecimento. Ensinar volta a ter, com Montessori, a mesma conotação encontrada no léxico comum, de que ensinar é aprender, porque ensinar é sobretudo pesquisar, e por isso é também construir, é aprender.
Ainda de Decroly retiramos a ideia fundamental de que só é possível viver a filosofia por ele inaugurada para aqueles professores considerados bons — pois pela ausência de regras iniciais cabe ao professor, antes de mais nada, haver adquirido uma considerável leitura de vida e de mundo, pois aprender é, inicialmente, aprender em relação à própria vida. Com ele, o gosto da pesquisa (que nasce na relação preceptor/discípulo), o espírito daquele que se dispõe a trabalhar, a criar, a ousar, a construir. O aluno da escola Decroly adquire nesse processo uma admirável disciplina de trabalho, aprende o valor dos conhecimentos necessários, o valor da pesquisa e da documentação. Guarda da escola e do mestre o sabor do saber e permanece um perpétuo estudante. É, segundo Piaget, já citado, "aquele que não se apressa em virar a página, mas aquele que se demora nela".
O movimento não de oposição ao patriarcado, mas do início de uma alteridade (“Denominação dada por C. Byington ao estágio evolutivo por patriarcal. Nela são ativados os arquétipos animus e anima; arquétipos do inconsciente coletivo. E o ciclo que instaura a reciprocidade, a relação dialética entre sujeito e objeto, eu e o outro, a busca da identidade profunda, o confronto com a sombra, com os opostos.”) , iniciado em Rousseau e prosseguido nos precursores da Escola Nova, é interrompido pela força do ciclo patriarcal, que é mais forte, e precisa eclodir a qualquer preço. A passagem do urobórico à alteridade, sem a permanência no patriarcado, como a história mesma comprova, foi privilégio de poucos e esses poucos porque solitários foram excluídos. Assim que no Brasil, o que nos chegou do Movimento da Escola Nova foi ou o aspecto patriarcal que ela contemplava dos recursos, dos materiais, das técnicas ou o indiscriminado, o urobórico, o non sense que a leitura de muitos (dos que não chegaram a ler os textos desses mestres em sua devida intencionalidade) apenas permitiu.
Hoje, final do século XX, assistimos perplexos à mudança de ciclo do patriarcado para a alteridade. Essa mudança se faz sentir em campos em que a objetividade (por paradoxal que possa parecer) se fez mais presente, como o da física, por exemplo, incorporando o espírito do paradigma emergente de ciência — o que alguns denominam de pós-moderno, como Boaventura de Sousa Santos e Lyotard, onde outros como Japiassú, em As paixões da ciência, denominam apenas ciência, aquela na qual o erro é condição da verdade; ou em que outros como Popper identificam como ciência do conhecimento provisório, ou mesmo Bachelard, como ciência em permanente pro­cesso de retificação.
O que está presente nesse novo ciclo ou paradigma de alterida-de é que a objetividade científica ou verdade reside única e exclusiva­mente no trabalho de crítica recíproca dos pesquisadores, resultado de uma permanente construção e conquista, de uma teoria que se coloca permanentemente em estado de risco, na qual a regra funda­mental metodológica consiste, como diz Japiassú, na imprudência de fazer do erro uma condição essencial para a obtenção da verdade.
Questionando elementos da realidade
Ao final do século XX, portanto, todos os indicadores marcam essa mudança de ciclo — Einstein, Boher, os filósofos da ciência. Outros indicadores dessa mudança de ciclo — a intensificação dos grupos interdisciplinares — nova forma de pensar, nova concepção de ensino, nova concepção de escola — passagem da forma disciplinar para a interdisciplinar, e isso, no dizer de Jung, acontecendo sincronicamente, em diferentes partes do mundo, e em diferentes "ditas especializações".
A palavra de ordem deste final de século é interdisciplinaridade na educação.
Passa-se, na escola, a denunciar concepções unilaterais de educação. Mas essa denúncia já começa a se fazer anúncio — ainda em poucos, em muito poucos educadores, somente naqueles nos quais o ciclo da alteridade já se instalou como processo. Muitos já falam na mudança, chegam até a vislumbrar a possibilidade dela, porém, conservam na sua forma própria de ser educador, de ser pesquisador, de dar aulas um patriarcado que enquadra, que rotula, que modula, que cerceia, que limita. Poucos são os que se aventuram a viver alteridadeporque é caro o preço que se paga pela mudança de ciclo. É preciso ser nisso um pouco de Fénix, morrer para renascer das cinzas; e morrer é assumir a consciência da ruptura, e a ideia de morte traz em si mesma uma ideia de finitude. Ser Fénix significa ver na morte a vida, ver na história a recriação, ver nessa forma que não é nova (já que habitava na Grécia) o prenúncio de alteridade, ciclo que não se sucede ao patriarcado, mas com ele pode coexistir numa dimensão de liberdade, de totalidade.
Os ciclos arquetípicos não apenas coexistem, mas se alternam. Na escola de hoje convivem intencionalidades de matriarcado com normas de patriarcado. Currículos com disciplinas rígidas, cargas horárias extensas, objetivos dúbios, indiscriminados, em que convivem tanto a polaridade patriarcal, quanto o desejo de alteridade.
Na França a instituição escola se organiza a partir de 1830. No Brasil, em 1930. Vivemos, entretanto, lá e cá, nessa época, uma fase urobórica em educação — não sabíamos bem o que era escola, o que seria ensino —, ensaiávamos mil formas de fazer e pensar educação, sem sabermos bem por que e para que educar.
De 1940 a 1970 a instituição escola tenta se organizar: define-se currículo, conceitua-se ensino, concebe-se escola. Seria isto o anúncio de um patriarcado na educação?
Com a Lei 5.692/71, embora o anúncio fosse de alteridade, voltamos foi ao urobórico, ao indiscriminado. A pretensa rigidez das disciplinas resultou num todo amorfo, sem origem, sem status, sem destino...
Patriarcado e matriarcado alternaram planejamentos rígidos à ausência de critérios, à ausência de ética profissional, à ausência de um quem é quem e de onde se pretende ir em educação.
Na década de 1990, o anúncio de pesquisas e produções que tentam romper a permanência da polaridade matriarcado/patriarcado, as pesquisas sobre a prática de sala de aula passam a desvelar aspectos de uma realidade muitas vezes vivida porém não percebida; é o ciclo de alteridade latente, ainda escondido sob o manto de um urobórico ou de um patriarcado. Outras pesquisas apresentam a leitura e a releitura de teóricos clássicos, de práticos clássicos. Na ação, no cotidiano, todas as polaridades se alternando, se encontrando — as pesquisas têm procurado revelar isso, embora a descrição ainda seja falha e a interpretação ainda truncada. Busca-se um novo rigor — uma outra forma de rigor mais acentuado, em que da objetividade empresta-se a seriedade, a ordem, e da subjetividade, a emoção, a poesia.
Explorando possibilidades e esboçando perspectivas
As pesquisas sobre escola, sobre a sala de aula e nela, professores, alunos, aprendizagem, ensino passam pela empiria, pelo rigor absoluto, pelo uso de tabelas, pelas teorias encomendadas e pelas formas estereotipadas de investigar o fenómeno (patriarcado). Somente a partir da abertura de portas da sala de aula, a rigidez da empiria vai sendo substituída por uma outra tentativa de interpretação e de explicitação disso que não é plenamente entendível — escola — e desse objeto estranho — sala de aula.
Porém, essa interpretação, tal como nos adverte Ricoeur, (“Paul Ricoeur, Interpretação e ideologia”) precisa sustentar-se em dois pilares não polares — subjetividade e objetividade; não polares porque não se antagonizam, mas se interagem, se acrescentam, se intersubjetivam.
O perigo está em se negar o patriarcado na pesquisa e no ensino e voltar-se a um todo indiscriminado, urobórico — isso seria um retrocesso, e no dizer de Bachelard, para tanto seria necessária uma vigilância do educador, não à l-, nem à 2-, nem à 3-, mas à 4- potência.
Mudar currículo na escola, rasgando o velho é, por exemplo, atitude de quem despreza o patriarcado e se volta ao comum ou ao non sense. O mesmo se refere às relações interpessoais entre professor e aluno — é necessário saber quem é quem, porém, o respeito, a mutualidade, a reciprocidade são indicadores de alteridade que precisam ser preservados. São indicadores, como já dissemos em outra ocasião, de um novo rigor, de uma nova ordem, porém não revivida, mas recriada — é o velho travestido de novo.

Se estamos, ou queremos viver hoje na educação um momento de alteridade (como construção/produção de conhecimento) é funda mental que o professor seja mestre, aquele que sabe aprender com os mais novos, porque mais criativos, mais inovadores, porém não com a sabedoria que os anos de vida vividos outorgam ao mestre. Conduzir sim, eis a tarefa do mestre. O professor precisa ser o condutor do processo, mas é necessário adquirir a sabedoria da espera, o saber ver no aluno aquilo que nem o próprio aluno havia lido nele mesmo, ou em suas produções. A alegria, o afeto, o aconchego, a troca, próprios de uma relação primai, urobórica não podem pedir demissão da escola; sua ausência poderia criar um mundo sem colorido, sem brinquedo, sem lúdico, sem criança, sem felicidade.


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Forte abraço,

Prof. Sérgio Torres

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